COMPOSIÇÃO
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CONSELHO ARTÍSTICO
Notas sobre o encontro com Serguei Zemtsov por Tieza Tissi
NOTAS SOBRE O ENCONTRO COM SERGUEI ZEMTSOV
Por Tieza TISSI
No mês de agosto de 2013, o Teatro Escola recebeu o russo Serguei Zemtsov, diretor-pedagogo do Teatro de Arte de Moscou. Durante cinco sextas-feiras, ele trabalhou com o corpo docente da escola e, por dezesseis noites, esteve com um grupo de vinte atores profissionais no prédio da Adolpho Gordo. Sobre esses encontros com os atores, relataremos algumas impressões recolhidas sob o ponto de vista de um observador. Descreveremos a organização espacial da primeira parte de suas aulas, onde se desenvolviam exercícios aos quais o professor chamava Treinamento. A partir da organização espacial das aulas, em seus pequenos detalhes, identificaremos alguns conceitos fundamentais para o desenvolvimento do trabalho dos atores, segundo o Sistema de Stanislávski.
Todo o início de aula, o professor Serguei Zemtsov recebe os atores em semicírculo. Todos podem se olhar como em um círculo, prática comum às nossas aulas no Macunaíma. À diferença do círculo, essa organização do início de cada aula separa o professor do nível dos atores. O professor está sempre à frente, fora do semicírculo, como um regente, ou no lugar da plateia. Dessa posição ele tem grande flexibilidade para entrar no espaço de trabalho (delimitado pelo semicírculo) e sair dele, regendo de dentro ou de fora, ou assumindo o lugar do espectador. Este detalhe parece um ponto importante na organização de suas aulas. Com o espectador colocado no espaço, os alunos estão em cena desde o primeiro instante da aula. Isso requer uma atenção especial ao modo de execução de cada exercício. Em cada um deles há a necessidade, por parte do ator, de alcançar um estado de espírito vivo, uma atenção e escuta aguçadas e de manter certa preocupação (sem que jamais ela seja o único foco) com a plasticidade dos seus movimentos.
Nessa organização espacial da aula, podemos enxergar muitos dos principais pontos do trabalho desenvolvido por Zemtsov com os atores. Para ele, os atores devem estar em sintonia antes de começar o trabalho. Cada gesto que surge na aula deve ser um gesto “do” e “para” o coletivo. Assim, o primeiro momento das aulas, com todos ocupando suas cadeiras no semicírculo, era a conversa. Ali, cada um poderia contar um Acontecimento do seu dia. De modo que todos pudessem reconhecer seus parceiros de trabalho daquele dia. Mas isso não era tudo. Ouvindo o relato dos parceiros, o ator compreenderia um pouco de seus estados de espírito.
Durante os encontros, muitos dos exercícios aos quais Serguei dava o nome de Treinamento, foram repetidos. O teor dos comentários que ele tecia sobre os mesmos exercícios era, no entanto, sempre um pouco diferente. Sobre essa ‘chegada’ dos atores e seus relatos pessoais, não tive clareza se o objetivo que acabo de relatar é ou não o principal. Ao longo dos dias, foi ficando mais evidente um segundo objetivo. O ator, ele dizia, deve ter a habilidade de identificar os Acontecimentos de seu papel. Mesmo em seu cotidiano, em qualquer situação, é preciso que encontre um Acontecimento Principal. Pensando nisso, observei que muitas outras práticas realizadas naqueles encontros colocavam o ator justamente diante da tarefa de encontrar e comunicar o Acontecimento Principal.
A segunda parte de todos os encontros era constituída pela apresentação dos Ètudes que os alunos haviam preparado em casa. O nível de dificuldade dos Ètudes era gradativo, partindo de objetos até chegar a pessoas. Para esses Ètudes, nos quais o ator deveria experimentar “ser” um liquidificador, uma fralda, um chiclete etc., era indispensável a construção de uma trajetória marcada por um Acontecimento Principal. E mais, o Ètude não deveria terminar no Acontecimento Principal. O mais importante para o trabalho do ator seria reagir a esse Acontecimento, experimentar uma mudança em seu estado de espírito. A semente dessa experiência, que passa pela identificação do acontecimento, estava lá no início dos encontros, no aparentemente despretensioso relato pessoal dos atores no semicírculo.
Também ali, na própria organização do início do trabalho de cada encontro, era notável outro ponto fundamental ao trabalho com atores sob a regência do professor Zemtsov: a Harmonia do grupo. Todos os dias, para começar o trabalho e depois, em cada transição da aula (quando o grupo era dividido em dois), os atores deveriam executar uma “coreografia” para se sentar, levantar e mover suas cadeiras. Era imprescindível que os atores sempre se levantassem e sentassem simultaneamente, que se virassem para o mesmo lado e erguessem suas cadeiras como se fossem realmente um corpo de baile.
A obrigatoriedade desta “coreografia” certamente não visava simplesmente o prazer estético que a movimentação poderia provocar no diretor, em sua tradutora e na observadora. O compromisso dos atores com esta solicitação mantinha-os integralmente atentos uns aos outros. Mesmo o subgrupo que eventualmente estivesse fora da área de trabalho (em alguns momentos Zemtsov trabalhava com dez atores por vez) poderia, a qualquer momento, ser convocado a reocupar o semicírculo, o que deveria ser feito em absoluta harmonia e de maneira sincrônica. A orientação era “tentem sentir que vocês fazem parte de um mesmo organismo”. Além disso, o ato de se sentarem simultaneamente marcava o início de um novo exercício. Essa consciência de um novo início, marcada pelo ato de sentar em sincronia com os outros atores, favorece a manutenção do estado de prontidão em cada um. Esse estado de prontidão foi claramente solicitado pelo professor.
Mas a preocupação Plástica com cada gesto, com cada pequeno ou grande movimento, também constitui um ponto importante para o trabalho do ator. Este tipo de cuidado deveria ser recuperado em todos os exercícios e esteve presente desde o início de cada encontro na execução da mesma “coreografia” de que falamos. Além da evidente conexão com a percepção do ator de que estar em cena significa desenhar com seu corpo no espaço, trabalha-se intensamente a noção de que é necessário ao ator compor com todos os elementos da cena. Isto está intimamente ligado à execução da “coreografia” de levantar-se, sentar-se e mover as cadeiras, à sincronia, à limpeza nos gestos e movimentos, à suavidade do caminhar, à leveza das expressões dos rostos dos atores. A preocupação plástica com a execução de cada exercício está intimamente relacionada ao ensinamento de Stanislávski repetido diversas vezes por Zemtsov: “Ao ator, aquilo que é difícil deve se tornar possível, o que é possível deve ser tornar fácil e o que é fácil deve se tornar belo”. A Plasticidade é um compromisso com a beleza. E será, possivelmente, o último passo do ator na execução de qualquer tarefa.
No entanto, esse compromisso com a beleza não poderá jamais se tornar o único foco do ator, pois haverá sempre duas ou mais tarefas a realizar. E será imprescindível ao ator tentar realizar suas tarefas. Embora a preocupação com a plasticidade de seus movimentos não deva ser a principal preocupação do ator (talvez do dançarino), ela tampouco deverá, nem por um instante, deixar de existir. Por isso, a delimitação do espaço de treinamento dos atores com a necessária separação do professor (e da tradutora e da observadora) é importante para o desenvolvimento da Consciência Plástica nos atores. A presença de uma plateia, formada por esses três elementos, tem o efeito de lembrar aos atores que eles estão sempre em cena e que, qualquer movimento realizado ali, comunica.
Falamos da construção de um Acontecimento e das noções de Harmonia e de Plasticidade. Chegamos, finalmente ao ponto mais delicado do trabalho com o professor Zemtsov, previsto desde a organização espacial de suas aulas e claramente protagonista de todo o treinamento: o Tempo-ritmo. O mesmo exercício que chamamos “coreografia”, em sua prerrogativa de Harmonia, supõe claramente o afinamento de um Tempo-ritmo coletivo. Quase todo o treinamento da primeira metade dos encontros era voltado para exercícios de Tempo-ritmo. “O importante”, ressaltava Zemtsov, “é manter o Tempo-ritmo”. Por isso os atores não deveriam ter pressa na execução dos exercícios. A compreensão do Tempo-ritmo por cada ator (e a compreensão para Stansilávski, de acordo com Zemtsov, só pode se dar no corpo do ator, quando este está “fazendo, agindo”) é fundamental para a construção da Harmonia do grupo, para que todos façam parte de um único organismo vivo. A compreensão do Tempo-ritmo é também algo fundamental na captação da Semente de seu papel por parte do ator. O ator deverá compreender o Tempo-ritmo de seu personagem, seja ele um liquidificador, um tigre ou uma pessoa. Essa percepção vai ajudá-lo a dar vida ao seu personagem. E ainda, na realização de um Acontecimento, o Tempo-ritmo do personagem deverá se modificar (no exercício do relato pessoal, nos Ètudes, nas cenas). O Tempo-ritmo servirá de base para a composição do estado de espírito do personagem ou do ator que relata um acontecimento de sua vida.
Ao observador, destacado do grupo de atores desses encontros com o professor Zemtsov, a recorrência dos temas aqui tratados em todas as práticas foi-se tornando mais clara a cada dia. A colocação dos atores no espaço, a execução de cada exercício, a transição entre um exercício e outro, enfim, toda a parte do treinamento nas aulas do professor Serguei lidava com os conceitos aqui tratados (Tempo-ritmo, Harmonia, Plasticidade, identificação dos Acontecimentos) e tão caros a Stanislávski. Os ensinamentos do mestre estavam colocados na ação – em todas as pequenas ações desenvolvidas pelos atores nas aulas de Serguei – por isso o professor evitava falar em conceitos. Atores compreendem conceitos agindo e não teorizando. Possivelmente, aos atores envolvidos em suas tarefas, a trajetória dos encontros fosse mais nublada, menos evidente. É certo, no entanto, que o professor, desde o pensamento sobre a organização espacial das aulas, pareceu-nos empenhar esforços em deixar sempre claro o caminho que os atores estariam percorrendo e com quais habilidades estariam lidando, mesmo que os sinais fossem colocados gradualmente, como pistas, como pontos condutores da ação.
Tieza Tissi é atriz, tradutora, mestre em Literatura Russa pelo DLO/FFLCH – USP e professora no Teatro Escola Macunaíma.